Confiança TimeEsse é mais um artigo baseado na prática de Scrum e na leitura de “Conversations For Action and Collected Essays: Instilling a Culture of Commitment in Working Relationships”, de Fernando Flores e Maria Letelier. Agora vamos aproveitar as ideias do livro para ajudar o estabelecimento de uma relação de confiança entre o Dono do Produto (PO) e o Time, entendendo essa relação como uma das mais importantes no Scrum.

Para relembrar, Flores busca na Teoria dos Atos de Fala explicações para o sucesso e fracasso das relações de trabalho, principalmente nas relações onde alguém se compromete a fazer algo para outra pessoa, em um ciclo pedido, promessa, entrega e aceitação. Já discutimos como o Scrum suporta esse ciclo.

Segundo Flores, no contexto de trabalho em grupo produtivo

“A confiança é crucial, não somente para os relacionamentos internos, mas também para as relações com o cliente”.

Nesse caso vamos focar nas relações entre Time e PO, ou seja, nas relações entre o Time e seu cliente.

Como a confiança é criada?

Bem, a princípio o PO pode escolher um entre quatro papéis:

  1. confiar,
  2. ser prudente,
  3. ser ingênuo ou
  4. desconfiar.

Normalmente essa posição inicial de confiança já faz parte da personalidade da pessoa ou foi criada em um ambiente ou domínio específico após outras experiências más ou bem sucedidas. Na gradação entre confiante e desconfiado, devemos estabelecer alguns parâmetros. Aquele que confia está ciente de que pode errar, enquanto o ingênuo não tem essa noção, ou seja, noção do risco em que está se envolvendo quando aceita que Time vai fazer um trabalho, porém ambos escolhem confiar no Time. O prudente se preocupa em investigar se oTime é capaz antes de aceitar que ele faça o que pede, enquanto o desconfiado suspeita e é difícil de convencer.

Esses comportamento, principalmente no princípio de um projeto, pode se refletir em vários passos do Scrum, porém minha sensação é que os maiores problemas de relacionamento estão no momento em que o Time define o esforço necessário para as tarefas ou escolhe um conjunto de tarefas para executar. Já vi POs suspeitarem do Time estar “pegando pouco peso” ao definir o Sprint Backlog ou “dando notas muito altas” ao definir o esforço da tarefa.  Como essas atividades são inerentes ao Time, o PO acaba expressando seu descontentamento de várias formas, inclusive com pressões e ações preemptivas, como criar datas de entrega falsas e adiantadas de forma a forçar o grupo a acelerar seu passo (e provavelmente partir para uma marcha para a morte).

Entre as tarefas do Scrum Master, como um facilitador, está certamente a de azeitar o relacionamento entre Time e PO. Para isso é importante estabelecer uma relação de confiança, que como dissemos, não existe no início e vai sendo desenvolvida ao longo do relacionamento. Voltando a Flores, podemos entender que essa relação é construída sobre quatro avaliações que o PO faz do time:

  1. sinceridade,
  2. competência,
  3. confiabilidade e
  4. engajamento.

Para garantir uma boa avaliação de sinceridade, a equipe tem que mostrar ao PO que não faz promessas que não pode, por intenção ou competência, cumprir.  Para garantir uma boa avaliação de competência a equipe deve executar suas tarefas de acordo com os padrões de qualidade estabelecidos entre ela e o PO. Já quando o assunto é confiabilidade, a equipe deve mostrar ser capaz de completar suas tarefas no prazo e deixar claro quando não vai poder cumpri-las por algum motivo e, finalmente, para mostrar engajamento à equipe deve mostrar comprometimento com os interesses do PO.

Novamente podemos ver que o Scrum já busca atender vários desses requisitos. A limitação de tempo de uma Sprint, o conceito de valor, a reunião de revisão, tudo isso implica em facilitar o reconhecimento dessas qualidades na equipe, favorecendo uma avaliação bem fundamentada do PO, por meio de uma sequência de fatos que pode ser revisada no futuro (principalmente se você usa uma ferramenta automatizada que guarda a memória do seu trabalho).

Mesmo assim, ainda podemos encontrar conflitos. Novamente vou dar o exemplo da desconfiança do PO de que a equipe está inflando os números da estimativa de esforço. Segundo a teoria de Flores, o PO, nesse caso, está fazendo uma avaliação que pode ser bem ou mal fundamentada. Podemos também ver que como o interesse do PO é receber valor dentro do prazo, o que está acontecendo nesse caso específico é que ele desconfia ou da sinceridade da equipe, ou do engajamento da mesma.  Veja que nessa desconfiança ele não coloca em jogo, a priori, prazo ou competência.

Para iniciar o tratamento dessa questão, cabe ao Scrum Master investigar, buscar dados que permitam a ele afirmar fatos que corroborem ou não a avaliação do PO. Flores acredita que muitos dos problemas do espaço de trabalho estão relacionados a avaliações incorretas, ou seguindo sua nomenclatura, infundadas. Uma avaliação bem fundamentada precisa ser baseada em um interesse, restrita a um domínio, ter fatos que a comprovem, seguir padrões com que as pessoas estão comprometidas e permitir que ações sejam feitas para corrigir avaliações negativas.

Veja agora a importância de manter o histórico do trabalho. Avaliações bem fundamentadas dificilmente podem ser feitas ou comprovadas usando apenas a memória das pessoas. Vários experimentos já mostraram que nossa memória possui um viés e tendemos a nos lembrar mais dos fatos que suportam nosso estado cognitivo corrente. Assim, um PO sob pressão de tempo pode se lembrar mais dos fracassos que dos sucessos da equipe. A memória do projeto, possivelmente obtida por meio de ferramentas automatizadas, pode ajudar o estabelecimento de fatos que provem, ou não, as avaliações que fazemos.

Podemos também citar o princípio ágil da transparência. Se toda a informação está disponível para todos e todos acompanham o trabalho, então as avaliações que fazemos do trabalho estarão mais próximas de serem bem fundamentadas.

Continuando com o tratamento da questão, o Scrum Master deve não só atacar o problema, seja ele verdadeiro ou falso, como também deve se preocupar em estabelecer ou re-estabelecer a confiança trabalhando as quatro avaliações. O PO deve acreditar na sinceridade, na competência, na confiabilidade e no engajamento do time. São esses os pontos específicos a serem tratados. Soluções possíveis dentro do contexto são, por exemplo, fazer o PO participar mais do dia a dia da equipe e desenvolver conversações mais produtivas, onde o interesse do PO é levado mais em conta. Isso implica em trabalhar apenas o que o PO está pedindo, mas por que ele está pedindo uma história.

Não é surpreendente que as propostas do Scrum se encaixem de certa forma  ao texto de Flores e Letelier, pois são a primeira edição pública de textos antigos que foram circulados no passado e provocaram muitas ideias, tanto na teoria quanto em aplicações. Porém, podendo agora ver o que Flores propôs no passado temos a oportunidade de entender nossas práticas de trabalho.

Bom material de discussão para Reunião de Retrospectiva.


Leia também os demais posts baseado também na leitura do livro Conversations For Action and Collected Essays: Instilling a Culture of Commitment in Working Relationships”